Colapsos

Todo tombamento é uma escolha. Uma escolha da sociedade a indicar pelo quê quer fazer-se representar: pela excelência artística, arquitetônica, pela significação histórica, pela identidade local, regional, do país. Trata-se, portanto, de um patrimônio que, pertencendo ao amplo universo da cultura é, essencialmente, um bem social. Um bem tombado.

 Atingi-lo, destruí-lo, seja por ações impróprias, seja por inação calculada, pública ou privada, é atingir o cerne de uma escolha social, de um bem que pertence, enquanto representação cultural, a todos. Por isso, não por outro motivo, é crime, como estabelece o artigo 165 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 do Código Penal Brasileiro. Por isso são obrigatórias as ações de conservação, de manutenção, de restauro conforme parâmetros estabelecidos. Por isto, constituíram-se órgãos técnicos e conselhos específicos para este fim. CONPRESP, CONDEPHAAT e IPHAN são siglas bem conhecidas nas esferas municipal, estadual e federal, também o Ministério Público tem exercido papel ativo no controle das obrigações de preservar.

Mais do que isso, em razão da letargia, da inação “justificada”, da absoluta ausência de habitabilidade e conservação no Wilton Paes de Almeida, patrimônio arquitetônico destruído por incêndio em São Paulo, ao menos 7 mortos esperam por serem encontrados: o que assistimos é, portanto, um crime de múltiplo espectro.

Não falo em desleixo, desconsideração, irresponsabilidade. Falo em crime.
Cabe, assim, a pergunta primária e natural: o que o motivou? Quem são os responsáveis por esta tragédia?

Os primeiros depoimentos dos dirigentes de todas as instâncias públicas, prefeito, governador e presidente, todos presentes na cena, são unânimes: as medidas e providências foram tomadas e, claro, as responsabilidades legais cumpridas, ou seja, não haveria qualquer responsabilidade pública.

Tombado desde 1992 e a partir de 2002 propriedade pública, do governo federal, o edifício foi ocupado em 2013 e, a partir de 2017,  cedido à própria prefeitura municipal cuja Secretaria, responsável pela tutela deste bem desde seu tombamento pelo CONPRESP, encontra-se a cerca de 100m do local.

Justificar seu abandono por um viés econômico, a fuga do centro por empresas privadas em razão de sua degradação ou as dificuldades burocráticas na aprovação de projetos como já publicado, não se aplica ao caso já que as aprovações são realizadas pelo próprio órgão gestor deste patrimônio e o que se tem visto é um retorno dos órgãos públicos à área central, ainda que tais observações sejam verdadeiras para outros agentes imobiliários que atuam na cidade.

Não ter sido arrematado em leilão por agentes privados, em nenhuma hipótese eximiria seus proprietários ou gestores públicos da atenção e do cuidado exigidos por lei e, no entanto, a situação do edifício, deste patrimônio público e bem tombado, após a saída da polícia federal, era de completo abandono.

Outras análises levantam a inexistência ou a debilidade das políticas públicas de habitação assim como um planejamento urbano minimamente qualificado e que restaria a alternativa das ocupações entendidas, neste contexto, como legítimas, organizadas ou não por movimentos sociais de caráter político. Resvala-se, até mesmo, no argumentar pela ilegalidade das invasões como se sobre os ocupantes, desprovidos de quase tudo, sobre eles recaísse a responsabilidade pela degradação do patrimônio: culpam-se as vítimas. A história conhece bem estas sonoridades.

Trata-se de um duplo risco, aos ocupantes e ao patrimônio em si (não como valor material, como propriedade imobiliária) mas como bem cultural socialmente apropriado.

Bem, qual a conduta neste caso do poder público: aceitar a emergência social sujeitando estas populações a uma situação de risco, exploração e inabitabilidade? Por tratar-se de um patrimônio arquitetônico, histórico e cultural de São Paulo, também sob risco, não está clara a exigência legal de uma ação imediata de proteção?

A quem caberia agir, a quem caberia proteger o patrimônio humano e material desta cidade? Dito de outro modo, a quem cabe o exercício, a atribuição legal de proteger?

Da janela do Secretário de Cultura do Município de São Paulo via-se o prédio e assistia-se, dia a dia, sua degradação, sua decrepitude acelerada. De sua janela também são vistos, hoje, os escombros.

Do gabinete do prefeito, no Viaduto do Chá, a cerca de 300 metros do local, via-se o prédio, assim como o fogo e a fumaça podiam ser vistos da sede do Condephaat, localizado a cerca de 400 metros do local, órgão estadual sob cuja tutela indireta também se encontrava esta edificação.

O que há nesta névoa que nubla a visão e a perspectiva dos agentes públicos ainda que a tragédia anunciada lhe bata à porta?

O que nubla a visão dos agentes públicos sentados nas cadeiras do judiciário que não vêm à luz para dizer: isto é um crime, aplique-se a lei!

Impossível não dizermos, também, do flagrante esvaziamento dos órgãos técnicos responsáveis pela gestão do patrimônio cultural com drástica redução de profissionais contratados à reboque da inexistência de políticas específicas para tal fim interpondo obstáculos infindáveis a uma ação efetiva.

Lembremos que outro colapso recente, o incêndio do Museu da Língua Portuguesa, ainda não baixou suas cinzas.

Ninguém, nenhum país, nenhuma cidade, nenhuma sociedade deseja fazer-se representar por escombros e por morte e, no entanto, aos nossos olhos e aos olhos de todos, é exatamente este cenário o que temos a apresentar como Patrimônio e que, assim, nos representa e nos submerge em um vasto espectro de oficial insensatez.

 

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Conservação e Conservadorismo

Dilema contemporâneo da preservação do patrimônio arquitetônico

Os primeiros movimentos da preservação no Brasil, entre os anos 1930 e 1960, foram embalados menos por um espírito historiográfico-documental a coletar monumentos, que por um impulso gigantesco de apropriar-se de uma certa “fatia do tempo”, de uma construção histórica nova e produzida na América, para ali afirmar todas as diferenças e encontrar as matrizes de um desenho de nação.
Entre um casario singelo e igrejas barrocas pelas ladeiras irregulares de Minas forjava-se, mais que uma identidade, um lastro, cuja densidade permitiria que nos lançássemos em busca de lugares não conhecidos. A isso chamam futuro, como chamaram, também, modernismo.

Assim como em Palladio, ou em Piranesi, redescobrir e reinventar são, ambos, movimentos que sugam do passado a alma necessária sem a qual não se pode encontrar uma nova imagem da própria contemporaneidade, não se pode encontrar uma imagem em que esta se reconheça. Não se pode inventá-la.
É o desejo de reinvenção que embala o olhar retrospectivo procurando, ali, na história pregressa, alguma solidez que o impulsione e legitime.
Mário, Lúcio Costa ou Rodrigo, funcionários públicos recolhidos atrás das escrivaninhas do Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional, certamente não colecionavam parques e monumentos. Talvez concebessem um país e uma beleza nova recolhida, simultaneamente, da contemporaneidade e da história.

Conservar, aqui, era um projeto, parte essencial da utopia moderna – talvez sua parte mais paradoxal, seu resíduo ainda romântico, seu manancial lírico e mal comportado. Cada casa, cada igreja, cada rua, cada cidade que se instituísse como referência era, também, um manifesto, um diálogo com as torpezas de uma história de dependência, um diálogo afirmativo com o futuro, um manifesto em direção à liberdade. Um projeto simultaneamente estético e político, simultaneamente moderno e nacional.

Pouco depois, nos anos 1970, e imerso, o país, na couraça militar refratária à dimensão política da cultura e empenhada na montagem de um projeto tecnocrático e modernizador, associado a um intenso processo de urbanização, criaram-se novas instâncias, agora estaduais e municipais, ampliando o quadro institucional destinado às questões de preservação.

Eram os Conselhos de Defesa do Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Artístico, destinados não mais a instituir o Patrimônio, mas a defendê-lo e, como grande ameaça, colocava-se a própria urbanização nos moldes em que se processava. Dentro dela, dois movimentos centrais: a volúpia afirmativa do Estado empenhado em grandes obras urbanas e o que se chamava, então, a “especulação imobiliária”.

Entre as vítimas notáveis, estão o Senado da República, o Largo da Carioca e a Lapa no Rio de Janeiro, os palacetes ecléticos na Av. Paulista derrubados em uma só noite, o Largo de São Bento e a Praça de Sé no coração de São Paulo – expressão literal desse binômio.

Nesse segundo movimento de preservação da arquitetura não apenas redefinia-se a ação institucional, mas também o espectro de valores objeto de conservação: passando a incorporar o ecletismo, desprezado pelo ideário modernista, associado agora à ideia de valores locais, fazendo com que o acervo crescesse imensamente e exigindo que estruturas operacionais públicas pudessem assumir a responsabilidade pela tarefa de os preservar.

Expressão dessa ideia de defesa, a legislação estadual e municipal em São Paulo propunha a criação de invólucros às unidades protegidas – chamadas áreas envoltórias e delimitadas por um raio de 300m –, nos quais não penetraria a legislação urbanística geral e, com ela, a fúria do mercado imobiliário alavancada pelos créditos fartos oferecidos pelo BNH. Nem mesmo a ação inoportuna do estado modernizante, cabendo o poder discricionário relativo aos projetos para estes locais aos corpos técnicos em formação e aos Conselhos, representantes daquilo que chama “a sociedade”.

Mas, se afastava os danos potenciais, obstava, igualmente, os benefícios potenciais, com reflexos diretos à sua conservação em prazos bastante curtos.
Tal política de proteção desestimulava qualquer outra intervenção pelas restrições a priori através das quais operava, incorporando um componente de raiz ideológica que perdura até hoje: a luta contra um “capitalismo selvagem”, como era chamado, e um dos seus vilões prediletos, o especulador imobiliário. Assim, conservar, neste contexto, significava reagir.

Reagir apenas aos movimentos externos, reagir operando não com instrumentos projetuais de conciliação – próprios do urbanismo e da arquitetura –, mas reagir apenas com os instrumentos legais e com as práticas restritivas a eles associadas.

Reagir impedindo, não propondo. Reagir por negação criando em torno dos objetos de conservação um pretenso espaço inalcançável.

Para tais ambientes, “sob nova direção”, não aparecem, no entanto, os parâmetros reguladores, os projetos urbanos que dessem qualidade ao ambiente preservado. Bastava proteger.

Conservar, apenas como reagir, era de fato operar no sentido inverso ao projeto da modernidade, pois deixava ausente a dimensão propositiva essencial.

Em verdade, tais parâmetros, quando definidos, fizeram-se sempre através de uma regulamentação reflexa, resolvida a partir de eventuais propostas apresentadas desde fora das instituições públicas responsáveis, inaptas a realizar a tarefa de projetar, de propor, de regulamentar a partir de soluções arquitetônicas específicas, dando corpo às responsabilidades que tomou para si.

Passa a caber-lhes, então, apenas o poder discricionário, o julgamento sem princípios publicamente explicitados. Passa a caber-lhes o exercício de um poder de censura legalmente circunstanciado mais do que um poder de proposta tecnicamente substantivado.

Assim, penetrar nas zonas liberadas de defesa significava ultrapassar também as barreiras burocráticas estabelecidas por esse mesmo poder no novo cenário institucional.

Exatamente porque, em momento algum, tratava-se de projetar ou constituir conceitos mais estruturados através dos quais se ordenassem as intervenções nas áreas protegidas, a formação dos corpos técnicos nunca foi tratada como um tema central bem como a constituição de escolas que ampliassem a formação de profissionais neste segmento.

Conservar, portanto, anunciava-se sob a égide do conflito, definindo como estratégia a ampliação constante de áreas de controle sem, no entanto, construir as bases teóricas e formular os princípios reguladores para reintegração desses espaços ao desenho da cidade que o circundava.

Princípios reguladores entendidos como projetos urbanos e arquitetônicos que, apoiados em princípios manifestos em cartas internacionais, em experiências projetuais anteriores e em demandas específicas de cada circunstância transformam-se em normas que podem ser apropriadas coletivamente e sobre as quais serão desenhados cada um dos projetos novos a serem edificados no bem tombado ou em seu campo de influência.

Solução tornada paradigmática e praticada em todo país, advinda de modelo americano, o palacete ou a fachada preservada, tendo como pano de fundo uma grande torre ocupando o terreno original, foi a solução única encontrada para poucos casos localizados e traz, em si mesma, inúmeros problemas que não nos cabe aqui desenvolver.

Assim, o momento do projeto, do discurso conciliador da arquitetura e do urbanismo, não ocorreu, restando um imenso vazio de ideias e soluções ocupado, apenas e pobremente, por manifestações de corpos técnicos despreparados à parte suas autênticas intenções em preservar.

O caso do modelo tecnocrático modernizador nos anos 1980 e a recessão econômica reduziram significativamente a dimensão de conflito permanente, face à estagnação das transformações aceleradas do espaço urbano, o que permitiu uma ampliação mais intensa das áreas de controle sem grandes resistências.

Agigantava-se, assim, o acervo, com a inclusão de setores urbanos inteiros, e mantinha-se a mesma ausência de princípios reguladores explicitados e formalizados, a mesma ausência de projetos que instituíssem o diálogo entre as tramas espaciais e as demandas construtivas contemporâneas.

As estratégias de defesa resumiam-se, agora, a um mero processo de acumulação, a uma reprodução dos “bens” devidamente preservados, a uma acumulação de “patrimônio”. Conservar dissociava-se de um projeto de nação para converter-se em um programa de defesa de remanescentes históricos.

Impossível não pensarmos no conto borgeano Funes, o Memorioso, personagem para quem nada escapava: retinha, velozmente, tudo quanto o cercasse. Todos os detalhes, todas as nuances eram passíveis de descrição. Mas Funes, solitário e aleijado, quase repugnante, vivia recolhido a si mesmo, às suas noites e às suas contemplações e refratário ao novo: “leste, num trecho não demarcado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava pretas, compactas, feitas de treva homogênea”.

“Tinha aprendido sem esforço (quase tudo). Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar”, conclui Jorge Luis Borges.

Isto nos lança, diretamente, na cena contemporânea e nas sucessivas crises abertas recentemente. Crise de princípios, crise de projetos, crise de ideias, crise institucional.

Há dois movimentos claramente perceptíveis. O primeiro deles é uma decorrência direta da obrigatoriedade da formulação, a nível nacional, de novos Planos Diretores para as áreas urbanas o que implicava em definir, também, os termos de relacionamento entre as áreas preservadas e a dinâmica urbana como um todo. Impunha-se pensar projetos específicos para tais áreas. Era incontornável tal exigência que exporia, inequivocamente, o vazio legal existente e seus poderes (muitas vezes autocráticos) de decisão.

São Paulo criou as ZEPEC, zona especial de preservação cultural, sem, no entanto, estabelecer seus parâmetros numa tentativa de manter-se a situação pré-existente. Mas a pressão externa, oriunda de uma intensificação da atividade econômica, não permitiu.

Essa mesma intensificação, com um fortalecimento do mercado imobiliário, trouxe de volta o recrudescimento da antiga política de constituição de grandes áreas protegidas envolvendo bairros inteiros ou grandes segmentos, e da mesma forma atabalhoada: sem estudos prévios consistentes, sem projetos estruturados e discutidos, com a aplicação da mesma política de restrições cuja origem e cujo efeito sobre o bem tombado é objeto da mais palpável subjetividade.

Ipiranga, Aclimação, Mooca, Sumaré, Penha. Há fartos exemplos no âmbito municipal, o Conpresp.
Mas há uma diferença importante: não foi possível escapar à exigência de estabelecer critérios transparentes e claros que subsidiassem as relações entre as áreas preservadas e os tecidos urbanos contíguos. Nasceria, assim, a mais grave constatação: o desaparelhamento técnico dos poderes públicos para esta tarefa, para a tarefa de projetar e, a partir daí, constituir parâmetros justificáveis de intervenção.
A leitura de inúmeras instruções de processos de tombamento e pretensos ensaios de regulamentação das chamadas áreas envoltórias no caso de São Paulo, foi suficiente para percebermos quais categorias de espaço são usualmente invocadas e com que objetivos, assim como a palidez (para não chamarmos inexistência) dos procedimentos metodológicos que apoiaram tais decisões. Há casos em que os estudos, mesmos que incompletos e frágeis, realizaram-se quase um ano após a regulamentação – o que mostra a inconsistência do processo de tomada de decisões em regiões tão sensíveis.

Depurados de uma retórica quase sempre esvaziada de sentido operativo claro, resta um primitivo parâmetro central: o argumento da visibilidade a partir do entorno, para o qual se utiliza uma única categoria de espaço – a restrição da escala homogeneizando as áreas contíguas.

A restrição de escala – um tabu quase inarredável – cumpre, aqui, um papel muito mais ideológico, de atingir diretamente os agentes imobiliários, do que arquitetônico ou urbanístico, quando se sabe que a qualidade expressiva dos espaços depende, não poucas vezes, das molduras constituídas pelas edificações contíguas, de suas alturas adequadas, das perspectivas que conformam (o que só pode ser definido por projetos desenvolvidos a partir de ensaios volumétricos extensos e não pela inconsistência de soluções generalizantes).

Adere-se a isto uma visão homogeneizadora – estranha à heterogeneidade dos contextos e da identidade paulistana –, advinda da aplicação acrítica de parâmetros europeus, via de regra italianos, originados em projetos para pequenos centros históricos e não para metrópoles do porte de São Paulo.

Inexiste um projeto de preservação no âmbito metropolitano, que considere seus requisitos, suas dinâmica e sua forma.

Consequência direta deste uníssono chamado política de preservação é a ocupação extensiva do território impedindo a constituição de espaços livres junto às áreas residenciais. Onde se imaginavam cinco torres e um parque surgiram onze e parque algum; onde emergia uma nova torre, possível marco de renovação visual da área central, a mediocridade destes parâmetros fê-las converter em três unidades espacialmente inexpressivas.

A título de exemplo, uma marca da identidade metropolitana na área central, o conjunto composto pelo Edifício Itália, Copan e Hilton, deixaria de existir, assim como a conformação da própria Praça de República se aplicados tais princípios como área envoltória do Colégio Caetano de Campos de Ramos de Azevedo. Algumas obras centrais do modernismo paulistano também não teriam lugar junto ao teatro municipal. Ou mesmo os estudos de Prestes Maia para a região de Sé.

Assim, restringir a escala em grandes áreas de contiguidade, permitindo-as em terrenos exíguos, colados ao bem tombado, mostra, através do paradoxo, a ausência absoluta de senso, de critério e princípios operacionais, assim como a presença de um repertório restrito de soluções que impede a construção de contextos integrados onde todos os agentes de constituição do espaço urbano encontrem seu lugar.
Distante de representar um ideário nacional, um projeto de país que se afirma e se reconhece, insistindo em ver por todos os lados mais inimigos que parceiros potenciais na implementação de políticas eficientes de preservação, e dispondo de escassos recursos técnicos que permitam conceber projetos arquitetônicos ou urbanísticos que compatibilizem, para além da esfera do conflito, os múltiplos interesses e agentes que determinam a dinâmica de construção de espaço metropolitano –, conservar, portanto, converte-se, enquanto exercício de poder sobre amplas esferas desse espaço urbano, em conservadorismo. Pois, encapsulado em seu próprio universo, já não vê a própria transformação do contexto no qual atua e faltam-lhe meios para atuar dentro dele; deixa de ser uma voz na direção de uma ideia e passa a temer toda possibilidade de diálogo que conduza a situações e experiências outras, novas e ricas, rebaixando todas as expectativas à mediocridade das soluções burocráticas e previamente autorizadas.

Assim como Funes, o Memorioso, já não pensa. O próprio conflito talvez tenha lhe nublado a visão.
Não ousa. Nega, dentro das políticas de Conservação, a noção central que o sentido mesmo desse conservar contém, qual seja, o de interagir com a própria dinâmica das transformações construindo os termos de um diálogo profícuo, a se constituir, necessariamente, através da língua por onde falam a arquitetura e o urbanismo, lugar de síntese entre permanência e invenção.

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